A CIVILIZAÇÃO DO AMOR
«Ele os criou homem e mulher»
6. O cosmos, imenso e tão diversificado, o mundo de todos os seres vivos
está inscrito na paternidade de Deus como sua fonte (cf.
Ef 3,
14-16). Naturalmente, está lá inscrito segundo o princípio da analogia
que nos permite individuar, já ao início do livro do Génesis, a realidade
da paternidade e maternidade, e, consequentemente, da família humana também.
A chave interpretativa está na expressão «imagem» e «semelhança» de Deus,
que o texto bíblico acentua com grande relevo (
Gn 1, 26). Deus cria
em virtude da sua palavra: «Faça-se!» (por exemplo,
Gn 1, 3). É
significativo que esta palavra de Deus, no caso da criação do homem, seja
completada pelos seguintes termos:
«Façamos o homem à nossa imagem,
à nossa semelhança» (
Gn 1, 26). Antes de criar o homem, o Criador
como que reentra em Si mesmo para procurar o modelo e a inspiração no mistério
do seu Ser, que já aqui Se manifesta de algum modo como o «Nós» divino.
Deste mistério deriva, por via de criação, o ser humano:
«Deus criou
o homem à sua imagem, criou-o à imagem de Deus; Ele os criou
homem
e mulher» (
Gn 1, 27).
Abençoando os novos seres, Deus diz-lhes: «Crescei e multiplicai-vos,
enchei e dominai a terra» (
Gn 1, 28). O livro do Génesis usa expressões
já empregues no contexto da criação dos outros seres vivos: «Multiplicai-vos»,
mas é bem claro o seu sentido analógico. Não é esta a analogia da geração
e da paternidade e maternidade, que se há-de ler à luz de todo o contexto?
Nenhum dos seres vivos, à excepção do homem, foi criado «à imagem e semelhança
de Deus». A paternidade e a maternidade humana, mesmo sendo
biologicamente
semelhantes às de outros seres da natureza, têm em si mesmas de modo
essencial e exclusivo uma
«semelhança» com Deus, sobre a qual se
funda a família, concebida como comunidade de vida humana, como comunidade
de pessoas unidas no amor (
Communio personarum).
À luz do Novo Testamento, é possível vislumbrar como
o modelo originário
da família deve ser procurado no próprio Deus, no mistério trinitário
da sua vida. O «Nós» divino constitui o modelo eterno do «nós» humano;
e, em primeiro lugar, daquele «nós» que é formado pelo homem e pela mulher,
criados à imagem e semelhança de Deus. As palavras do livro do Génesis
encerram em si aquela verdade sobre o homem, que corresponde à própria
experiência da humanidade. O ser humano é criado, desde «o princípio»,
como homem e mulher: a vida da colectividade humana — tanto das pequenas
comunidades como da sociedade inteira — está marcada por esta dualidade
primordial. Dela derivam a «masculinidade» e a «feminilidade» dos simples
indivíduos, tal como daí recebe cada comunidade a própria riqueza característica,
no recíproco complemento das pessoas. A isto mesmo parece aludir a citação
do livro do Génesis: «Ele os criou homem e mulher» (
Gn 1, 27). Esta
é também a primeira afirmação da igual dignidade do homem e da mulher:
ambos são, igualmente, pessoas. Esta sua constituição, com a dignidade
específica que daí deriva, define desde «o princípio» as características
do bem comum da humanidade, em todas as dimensões e âmbitos da vida. A
este bem comum, ambos, o homem e a mulher, dão o próprio contributo, graças
ao qual se constata, nas próprias raízes da convivência humana, o carácter
de comunhão e complementariedade.( Trecho da Carta as Famílias- João Paulo II)